Falar tudo o que pensa: ignorância ou liberdade de expressão? 

Por Paulo Lira

Em 2015, o renomado filósofo Humberto Eco chamou atenção para um fenômeno social cada vez mais recorrente na sociedade 4.0. O empoderamento do “idiota da aldeia”, como chamou o autor, transformou automaticamente a audiência em “portadora da verdade”. Entretanto, passado poucos anos após a declaração de Eco, percebemos cada vez mais os custos crescentes da associação de marcas e profissionais com influenciadores que “falam tudo o que pensam”. 

Ainda seguindo a pista do filósofo italiano, o “idiota da aldeia” ao professar suas palavras sem qualquer responsabilidade e ética, possui o poder para gerar danos à coletividade de maneira que nem mesmo o “idiota” é capaz de reconhecer.  

Se determinado evento ocorreu por convicção ou má fé, não retiraríamos nenhuma grande lição discutindo tais aspectos. Cabe, entretanto, discutirmos as dimensões do que hoje é chamado desenvolvimento pessoal e profissional.  

Nesse sentido, julgo que podemos iniciar nossa reflexão a partir de três pilares fundamentais: responsabilidade coletiva, apropriação de conhecimento e bagagem cultural. E, claro, a interrelação entre essas três dimensões da nossa existência. 

Talvez o peso do nosso passado como sociedade ainda exerça uma força subestimada no presente. Isso significa, no mínimo, um baixo engajamento reflexivo em relação ao que nossos atos podem acarretar à vida de outras pessoas. O que no dia a dia já é pernicioso, em termos sociais ganha traços ainda mais relevantes.  

Sem dúvida o ato de expressar-se livremente foi, e segue sendo, uma conquista social que não deve sofrer nenhum tipo de cerceamento. A partir disso, podemos nos perguntar: é um ato responsável expressar uma opinião que tem como substância última o cerceamento da existência de alguém ou até de grupos sociais?  

A resposta pode ser “sim”, se levamos em consideração a liberdade de expressão como o ato da fala, por exemplo. Ou seja, como se fosse possível dissociar o ato da fala da responsabilidade e ética envolvidos nesse processo.  

Do ponto de vista pessoal e profissional esse é um aspecto central que, por vezes, julgamos não precisar de treino ou mesmo de “atualização”. O que significa dizer isso? Significa dizer que eventualmente não temos uma grande conexão com a dinâmica de transformação da sociedade e acabamos não percebendo os efeitos de ideias obsoletas.  

Competência sociocomportamental, como ficou conhecida essa discussão, é sem dúvida uma dimensão central para esses novos tempos em que percebemos que o “vale-tudo” tende a impactar de maneira negativa, e bastante rápida, o futuro de todos. Sendo que, do ponto de vista pessoal, estar desconectado com o seu tempo pode significar prejuízo em termos profissionais. 

 A responsabilidade sobre a exposição de ideias tem uma relação direta sobre o quão profundamente nos debruçamos sobre algum tema. A audiência pura e simples, transformada em profundidade, além do problema da responsabilidade, tende a fundamentações que não se sustentam.  

 A ideia da possibilidade de conhecer algo e ter autonomia para criação com pouco esforço e grande motivação, tende a gerar frustração de maneira bastante rápida. A autonomia é sim um elemento crucial para criarmos e conquistarmos nossos sonhos, mas ela é fruto de reflexão e prática.  

 Realizar algo com pouca ou nenhuma responsabilidade coletiva e baixa apropriação de conhecimento pode gerar riscos e instabilidades que fazem colapsar grandes projetos e carreiras.  

Atrelada à responsabilidade e à apropriação do conhecimento, a bagagem cultural é um elemento crucial para o desenvolvimento de pensamento crítico sobre o mundo. É a partir da abertura para o conhecimento integral do outro que desenvolvemos competências e habilidades para conceituar, analisar, questionar e avaliar ideias e crenças de maneira ativa. É a possibilidade que todos possuem de não se associar a ideias irresponsáveis e de baixo conhecimento real sobre determinado tema. É nossa capacidade de intervir na realidade com autonomia para a criação. 

É sempre importante lembrarmos que adentramos o século 21 com a ideia de estarmos na Era da Razão. A esperança da quebra de barreiras e a construção da autonomia pessoal para a concretização de novas realidades. Contudo, nos ronda a possibilidade de transformarmos o momento atual na Era da Manipulação, com baixa responsabilidade coletiva e criação de autoridade por pura audiência. Os riscos de associação com tais elementos são inúmeros, e o preço da ignorância no nível pessoal pode ser muito alto em termos de oportunidades, credibilidade, além de representar uma mudança drástica na forma de relacionamento com as pessoas e com a sociedade.

Paulo Lira

Head de Conteúdo da Galícia Educação e Professor Universitário. Doutor e Mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Professor Visitante na Columbia University (2017), em Nova York; Economista pela PUC-SP.

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