A noção de que as redes sociais estão intrinsecamente ligadas à projeção política dos Estados Unidos, às disputas de poder global e à própria lógica de guerra multidimensional, está cada vez mais claro; inclusive já discutimos o assunto anteriormente. E certamente, conseguimos entender como essa relação beneficia as instituições governamentais. Mas para usuários assíduos das redes sociais, que viram o Mark Zuckerberg usando foto com a bandeira LGBTQIA+ há alguns anos, talvez surja o questionamento: Por que as Big Techs abandonaram pautas progressistas e aderiram ao projeto Trump? Qual o interesse dessas empresas, que supostamente prezavam por valores alinhados à diversidade e inclusão, na atual agenda política americana?
Inicialmente, a ideia de que as Big Techs apoiaram pautas progressistas de maneira consistente ao longo de sua história não é totalmente verdadeira. Sem dúvida, empresas como Facebook, Twitter (antes de outubro de 2022), Google e YouTube desempenharam um papel significativo na ampliação dessas pautas, promovendo maior engajamento em torno de movimentos como o Black Lives Matter e o LGBTQIA+. Além disso, não se tratava apenas de algoritmos que amplificavam essas causas; essas empresas assumiram publicamente posicionamentos alinhados a valores como diversidade, inclusão e sustentabilidade.
Entretanto, esse cenário começou a mudar gradualmente, e essa inflexão pode ser parcialmente explicada por dois fatores principais:
- Regulação e soberania digital: A crescente busca por regulação do mercado digital por vários países, especialmente na Europa, colocou as Big Techs em rota de colisão com governos progressistas. Questões como taxação, controle sobre a coleta de dados e respeito à soberania digital passaram a ser interpretadas por essas empresas como ameaças diretas ao modelo de negócios que as sustentava.
- Engajamento e fake news: O escândalo da Cambridge Analytica exemplificou como essas plataformas foram usadas para manipular eleitores ao redor do mundo, tornando evidente que as redes sociais não eram apenas ferramentas de engajamento social, mas também arenas de disputa política e econômica. Esse episódio destacou como as Big Techs estavam envolvidas em uma dinâmica mais complexa, que transcendia o apoio a pautas específicas.
Diante desses elementos, é evidente que o apoio às agendas progressistas pelas Big Techs não era apenas uma questão de alinhamento ideológico, mas também uma estratégia para consolidar poder econômico e evitar conflitos regulatórios. Contudo, essas estratégias começaram a falhar, especialmente quando governos progressistas adotaram medidas para limitar seu alcance e influência.
Se você estiver buscando uma explicação superficial, essa resposta poderia parecer suficiente. No entanto, trata-se de uma questão muito mais ampla. Então, o que, além desses fatores conjunturais, explica a adesão das Big Techs ao governo Trump?
A resposta exige uma análise mais profunda, que envolve o papel histórico do Estado no desenvolvimento dessas empresas e a dinâmica da Economia Política global.
Ah, a Economia Política! Ela sempre nos ajuda a compreender os porquês e os comos. Então vamos lá:
A primeira coisa a ser compreendida é o papel que dos Estados no desenvolvimento de novas tecnologias e na criação de novos mercados.
As inovações radicais raramente têm origem no setor privado. Exemplos como ferrovias, nanotecnologia e a moderna indústria farmacêutica mostram que, por trás dessas áreas, que conferiram enorme poder competitivo a empresas e nações, está a atuação determinante de instituições estatais. Isso pode ser observado tanto no contexto da Revolução Industrial, como argumenta Eric Hobsbawm em Da Revolução Industrial ao Imperialismo — destacando o papel central do Estado inglês em fomentar demanda, oferecer crédito e apoiar a marinha mercante e de guerra — quanto no século XX, quando a Terceira Revolução Industrial fortaleceu a supremacia tecnológica dos Estados Unidos em relação à União Soviética.
Vamos por partes.
Grande parte do desenvolvimento de novas tecnologias que colocou os Estados Unidos em vantagem sobre os soviéticos foi fruto de organização e financiamento público, especialmente por meio da Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA). Se você nunca ouviu falar dessa agência, aqui vai uma explicação rápida: a DARPA foi criada no final dos anos 1950, logo após o lançamento do satélite Sputnik pela União Soviética. Desde então, a agência tem estado no centro de avanços tecnológicos que hoje fazem parte do nosso cotidiano, como internet, GPS, microeletrônica, semicondutores, telas sensíveis ao toque, assistentes de voz, inteligência artificial e sensores de câmera. Em resumo, muita coisa.
A pergunta que não quer calar é: Como as companhias privadas tiveram acesso a essas tecnologias?
O principal mecanismo foi a relação direta com o Estado americano por meio de contratos e financiamentos, tanto com o Departamento de Defesa quanto com a DARPA. Um exemplo é a Qualcomm, pioneira no desenvolvimento de redes 5G, que colaborou estreitamente com o governo. Outros mecanismos importantes foram as parcerias entre universidades e o Estado, que permitiram o desenvolvimento de novas tecnologias licenciadas posteriormente para empresas privadas, e os contratos de produção na área militar, com transferência de tecnologia e comercialização em forma de produtos para o mercado civil.
Portanto, se durante as décadas de 1960 e 1970 o desenvolvimento tecnológico foi maciçamente liderado pelo Estado, as décadas seguintes testemunharam uma transição. A partir dos anos 1980, o setor privado começou a absorver as tecnologias desenvolvidas com apoio público, registrou patentes, e tomou a dianteira no processo de inovação. Ao mesmo tempo, o governo americano adotou políticas de desregulamentação, facilitando a entrada de novas empresas no mercado (criando-o, em realidade). Foi nesse ambiente que surgiram as “ponto com”, em um modelo que se tornou muito familiar para nós hoje: as startups.
Esse novo ambiente deu origem ao que chamamos de “economia digital”. No início do século XXI, as empresas americanas passaram a operar essas tecnologias não apenas dentro dos Estados Unidos, mas também expandiram sua influência globalmente. Ao seguir a trilha da projeção econômica americana após o final da Guerra Fria, essas companhias se consolidaram como gigantes tecnológicas, criando oligopólios que dominam mercados em escala mundial.
Já começa a ficar bastante claro o caminho que nos leva à foto da posse de Donald Trump com os presidentes das Big Techs, certo? Mas ainda falta uma coisa importante. Por que elas passaram a integrar diretamente o novo governo dos Estados Unidos?
Apesar do desenvolvimento maciço de tecnologias com financiamento estatal, as Big Techs americanas não só se beneficiaram desse suporte inicial, como também se tornaram peças fundamentais na projeção de poder dos Estados Unidos no cenário global. Essa simbiose entre Estado e mercado, que garantiu a supremacia tecnológica americana no final do século XX, parecia, em um primeiro momento, suficiente para sustentar uma estabilidade sistêmica duradoura.
Após a queda da União Soviética, a política externa americana se reorganizou sob o que ficou conhecido como “fim da história”, com a supremacia dos valores neoliberais. A abertura comercial irrestrita, a livre movimentação de capital e o respeito à propriedade intelectual tornaram-se pilares de uma nova ordem global. Nesse cenário, as empresas de tecnologia passaram a atuar como instrumentos de expansão desse modelo econômico, consolidando seu poder dentro e fora dos Estados Unidos.
Mas essa estabilidade foi construída sobre bases que, aos poucos, começaram a mostrar rachaduras. Além das crises recorrentes geradas na periferia do sistema, com instabilidades comerciais, políticas e econômicas, as próprias Big Techs, ao projetarem o poder econômico americano, geraram dialeticamente as condições para o surgimento de um desafiante ao posto de potência única. A transferência de produção para países como a China não apenas reduziu custos, mas também possibilitou uma transferência de conhecimento técnico. Inicialmente vista como benéfica, essa estratégia resultou em concorrentes diretos, capazes de disputar mercados e tecnologias em pé de igualdade.
Para ser sucinto, podemos dividir as respostas globais à hegemonia neoliberal em três grandes grupos. Primeiro, estavam os países que não tinham como resistir à agenda propagada pelo poder americano, baseada em livre mobilidade de capital, desmantelamento de leis trabalhistas, abertura comercial irrestrita e adesão a acordos internacionais. A maioria das nações periféricas se enquadrou nesse grupo. Outros, como o Brasil, buscaram se antecipar a essa agenda, implementando reformas para atrair capital estrangeiro na promessa de uma nova onda de desenvolvimento. Por fim, países como a China, utilizando sua posição geopolítica estratégica, organizaram seu processo de desenvolvimento nacional dentro desse contexto de abertura. Mais tarde, Rússia e Índia também buscaram formas de escapar parcialmente das diretrizes neoliberais dos anos 1990.
Foi nesse ambiente que a China se destacou. Em menos de duas décadas, ela passou de uma economia baseada em custos baixos para uma potência tecnológica que desenvolveu inovações próprias e desafiou diretamente o domínio das Big Techs americanas. Empresas como Huawei, Alibaba, ByteDance (TikTok) e Xiaomi exemplificam essa mudança. Essas companhias não apenas competem em mercados globais, mas também desafiam a hegemonia dos Estados Unidos na coleta e uso de dados, um ativo essencial da economia digital.
Nesse contexto, a aproximação das Big Techs com o governo Trump ganha contornos mais claros. Trump, com sua retórica protecionista e anti-China, ofereceu um discurso alinhado às preocupações estratégicas dessas companhias. O fortalecimento da indústria nacional, a redução de regulações e o enfrentamento direto com as Big Techs chinesas criaram um terreno fértil para essa relação. Afinal, a sobrevivência dessas empresas está diretamente ligada à manutenção da hegemonia econômica e tecnológica dos Estados Unidos.
Mais do que uma ruptura ideológica, essa guinada das Big Techs reflete uma escolha pragmática: ao se alinhar ao governo Trump, essas empresas buscaram proteger seus interesses estratégicos. Como peças centrais da projeção de poder americana, elas entenderam que abandonar pautas progressistas e adotar um discurso alinhado ao conservadorismo era um preço pequeno a se pagar diante de ameaças existenciais tanto internas quanto externas.
Compreender essas dinâmicas exige olhar para a relação entre o Estado e o mercado, onde contradições e interesses se entrelaçam e moldam o mundo. Essa análise, embora complexa, é essencial para entender as mudanças globais e tomar decisões mais conscientes sobre carreira, finanças e futuro. É nesse poder explicativo da Economia Política que encontramos ferramentas para enxergar além do imediato.
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Paulo Lira
Head de Conteúdo da Galícia Educação e Professor Universitário. Doutor e Mestre em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Professor Visitante na Columbia University (2017), em Nova York; Economista pela PUC-SP.